EVANGELIZAÇÃO MISSIONÁRIA: ESTRATÉGIA HUMANA OU SOBERANIA DIVINA?

Escrevi esta carta em resposta a uma dúvida sobre: "estratégia humana e soberania de Deus em missões" enviada por uma missionária no campo. O nome foi trocado por questões óbvias.

Querida Ana,

Em primeiro lugar, muito obrigado por ter escrito sobre este assunto. Eu me sinto honrado em poder pastorear os missionários que estão no campo, pode usar e abusar.

Quanto ao assunto que você escreveu, vamos lá. Quando eu vejo o processo de evangelização no geral, sempre gosto de analisar em duas dimensões que se complementam. Por um lado vejo a soberania de Deus, fato inequívoco fartamente registrado nas Escrituras. Lá encontramos, por exemplo, que o homem não pode buscar a Deus por si só (Rm 3: 10 – 18); também descobrimos que a própria fé é um dom de Deus (Ef 2: 8, 9), logo, não é o homem com sua estratégia evangelística que converte o pecador, é Deus que vai ao encontro dele e acrescenta-o ao rebanho.

Nesse contexto devemos pensar o seguinte: “então não importa como eu pregue, uma vez que é o Senhor quem converte?” Não, não é bem assim. A evangelização requer estratégia humana sim, eu até diria estratégia cultural. Um exemplo é a língua. Para que o Evangelho seja compreendido eu devo pregar em uma língua que o ouvinte compreenda. Já pensou alguém pregando em sawi em plena Praça da Sé em São Paulo? É neste ponto que ressalto o uso de uma estratégia, por mínima que seja, para que a proclamação faça sentido (At 18: 4; 19: 8; 1 Co 9: 19 – 23). Quando pensamos em evangelização transcultural, o assunto se torna complexo, pois mesmo que utilize uma tática absurda para pregar em uma praça, eu, todavia, estou impregnado da mesma cultura daquele que me houve, pelo menos em aspectos gerais – a representação subjetiva do mundo.

É por isso que "Missões transculturais" é algo que deve ser debatido com seriedade, principalmente no que diz respeito às estratégias que devem ser utilizadas. Pensando em missões indígenas ao longo do tempo podemos avaliar em como houve erros na introdução do Evangelho. No passado, os missionários acreditavam que somente com a língua do outro poderiam eficazmente pregar a Palavra. Engano! Até mesmo hoje, muitos missionários nunca ouviram falar sobre “perspectivismo ameríndio”, ou seja, que a representação do mundo por parte deles é absolutamente dispare da nossa representação.

Vou apenas pincelar esta questão para que você entenda melhor. Nossa visão ocidental é demarcada pela racionalidade. Nós só consideramos humano aquele que partilha de uma razão, ou, num termo mais filosófico, um espírito. Pense você mesma, por que os Yanomami são seres humanos? Sua resposta vai na direção do que estou escrevendo agora: “Eles possuem alma”; ou, “eles possuem razão, são racionais”. Nesta dimensão encontramos uma concepção rígida do “ser”, pois ou é humano ou é animal – isto é o princípio da racionalidade. É neste contexto que pensamos: “ou se é cristão ou não, ou o sujeito é convertido ou ele não é”.

Já a visão indígena foge completamente desta lógica, pois para eles o que torna alguém semelhante é o corpo e não o espírito – é o princípio da animalidade. Lévi-Strauss informa que, enquanto a Universidade de Salamanca discutia se o índio tinha alma ou não (princípio da racionalidade), os Asteca afogavam os europeus aprisionados para verem se tinham corpo ou não (princípio da animalidade). Animalidade porque o corpo é o ponto de vista, logo não há problema, por exemplo, de um xamã se tornar um porco do mato ou um colibri, para ele isso é perfeitamente normal, enquanto para nós se trata de êxtase, blefe ou possessão (representação ligada à alma ou espírito). Há uma citação de Hans Staden no século XVI sobre Cunhambebe que diz o seguinte: “(...) Cunhambebe tinha à sua frente um grande cesto cheio de carne humana. Comia de uma perna, segurou-m’a diante da boca e perguntou-me se também queria comer. Respondi: ‘Um animal irracional não come um outro parceiro, e um homem deve devorar um outro homem? ’ Mordeu-a então, e disse: ‘Jauára ichê’ (Sou um jaguar)”. Percebeu o contraste? Quando temos este tipo de informação passamos a entender a inconstância indígena com relação ao cristianismo e às frases do tipo: “no passado eu era crente, ontem eu era um xamã, hoje sou uma sucuri”.

Com relação aos Yanomami, recomendo que você leia a minha dissertação de mestrado onde trato da atuação dos missionários no passado, a visão cultural que tinham e como isso contribuiu para a evangelização desses índios.

Concluo dizendo que não estou tratando de conflitos de valores aqui. As Escrituras informam claramente sobre este assunto. O que estou discutindo aqui se trata um pouco daquilo que devemos utilizar para a comunicação do Evangelho. Por isso afirmo que as estratégias são importantes na evangelização. Dependendo da atuação inicial você pode abrir como fechar a possibilidade da comunicação do Evangelho numa cultura ágrafa. Não basta apenas aprender a língua e transcodificar o índio pela nossa representação cultural (animismo, racionalidade, “coerência”, pontos excludentes etc.), temos que compreender a forma como eles vêem o mundo e ajustam suas práticas nestas representações. Por outro lado, não nos esqueçamos que somente os eleitos irão se converter, mas isso pertence à vontade soberana e oculta do nosso Deus (só para deixar claro que o mérito não está na estratégia, mas sim em Deus usar ou não da sua misericórdia).

Bem, espero ter ajudado um pouco. Que Deus a abençoe muito no campo missionário e que o Espírito Santo a mantenha animada e firme em fidelidade – isto é o mais importante para uma missionária de Cristo.

Um abraço.

Alfredo.


P.S. Autores na área da Antropologia que recomendo para essa discussão:

ALBERT, B. O Ouro Canibal e a Queda do Céu: Uma Crítica Xamânica da Economia Política da Natureza. Brasília: Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília, 1995.
CERTEAU, M. A Invenção do Cotidiano – Artes de Fazer. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1994.
DOWDY, H. O Pajé de Cristo. São Paulo: Sepal, 1997.
GEERTZ, C. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.
GOODY, J. The Domestication of the Savage Mind. New York: Cambridge University, 1977
________. The Logic of Writing and the Organization of Society. New York: Cambridge University, 1986
GRUZINSKI, S. A Colonización do Imaginario. México: Fondo de Cultura Económica, 2000
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Howard, C. “Pawana: a farsa dos visitantes entre os Waiwai na Amazônia” in VIVEIROS DE CASTRO, E., CUNHA, M. (Org.) Amazônia: etnologia e história indígena. São Paulo: FAPESP, 1993.
NEEDHAM, R. Belief, language, and experience. Oxford: Basil Blackwell, 1972.
PETERS, J. Life Among the Yanomami. Ontário: Broadview, 1998
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ROBBINS, J. Becoming siners. Los Angeles: University of California, 2004.
SANTOS, Y. A Imagem do Índio: O Selvagem Americano na Visão do Homem Branco. São Paulo: IBRASA, 2000.
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SHAPIRO, J. From Tupã to the land without evil: the christianization of Tupi-Guarani cosmology. American Ethnologist. 1987. v. 14, n. 1
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_________________ Transformando os Deuses: Os Múltiplos Sentidos da Conversão entre os Povos Indígenas no Brasil. Campinas: Unicamp, 1999.
WRIGHT, R. (Org.) Transformando os Deuses: Igrejas Evangélicas, Pentecostais e Neopentecostais entre os Povos Indígenas no Brasil. Campinas: Unicamp, 2004. Posted by Picasa

POETA AMADOR: CONFISSÃO DE UM INSENSATO!


Odeio Teologia! Não quero nem saber!
Odeio discussões sobre soberania; odeio que falem da liberdade delirante.
Quero ser livre para ser estouvado! Quero ser livre para ser raso!
Quero ser livre, longe da certeza! Quero ser livre para a mente ser tesa!
Livre da Lei, livre da consciência, livre do saber, livre da reflexão,
Livre da Teologia, livre do saber. Afinal, para que Teologia?
Prefiro o humanismo aloucado da teopraxia que nada responde;
Prefiro a verborragia dos clichês, da superficialidade daquilo que não sei;
Prefiro criticar por criticar pela defesa desatinada;
Prefiro o acho profundo a achar profundidade; quero criticar repleto de ingenuidade;
Somente criticar na crise da incautice do “nada sei e nem quero saber”!
Nada melhor do que ser inoculado pelo liberalismo;
Que injeta sem dor, sem sentido, sem nada;
Confissão do nada; fé de nada que muito exala o manhoso aroma,
Transformando minha confissão na confecção mesquinha.
Pois o que quero é encharcar a minha fé nas águas salobras de uma lagoinha;
Quero ser novo, quero ser neo, quero ser fogo!
Sentir o gosto das chamas que me enganam por que gosto.
Fogo que queima a lucidez, fogo que queima o saber, fogo que queima a Lei.
É por isso que eu odeio Teologia! E por que odeio tanto?
Odeio Teologia se tenho que ponderar; odeio Teologia se tenho que ler;
Odeio Teologia se tenho que examinar; odeio Teologia se tenho que escrever;
Odeio Teologia se tenho que lutar; odeio Teologia se tenho que amadurecer;
Odeio Teologia se tenho que pensar! Odeio Teologia se inteligente me tornar!
Odeio Teologia, quero ser insensato! Odeio Teologia, quero ser raso!
Odeio Teologia! Não quero nem saber!
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REFLEXÕES EM TEMPO DE ELEIÇÃO (1 de 4): O Desejo e a Hipocrisia

“Quando te assentares a comer com um governador, atenta bem para aquele que está diante de ti; mete uma faca à tua garganta, se és homem glutão. Não cobices os seus delicados manjares, porque são comidas enganadoras. Não te fatigues para seres rico; não apliques nisso a tua inteligência. Porventura, fitarás os olhos naquilo que não é nada? Pois, certamente, a riqueza fará para si asas, como a águia que voa pelos céus. Não comas o pão do invejoso, nem cobices os seus delicados manjares. Porque, como imagina em sua alma, assim ele é; ele te diz: Come e bebe; mas o seu coração não está contigo. Vomitarás o bocado que comeste e perderás as tuas suaves palavras.” (Pv 23: 1 – 8).

Estamos em época de eleições no Brasil, momento propício para fazermos um balanço sobre o nosso papel como cidadãos dos céus que residem neste mundo. Ao pensar neste assunto acredito que um dos grandes problemas culturais que encontramos na sociedade brasileira é a mania de querer tirar vantagem em tudo. Nesse caso, dos políticos que estão coreografando diante de nós. Muitos brasileiros estão dispostos a votar em alguém pela troca de benefícios na busca do favorecimento próprio, familiar, eclesiástico ou, no máximo, denominacional. Neste espetáculo vergonhoso, a visão do todo se deteriora ante a avareza e o oportunismo. Para muitos, tirar proveito sempre foi a palavra de ordem na delicada relação entre cidadão e político. Pensando nisso, quero refletir um pouco sobre este assunto tendo como base o Provérbio sapiencial supracitado. Há três aspectos importantes a mencionar.

Em primeiro lugar, devemos conhecer aquele que detém o poder e o seu objeto de barganha. Há a advertência para que prestemos atenção àquele que está nos seduzindo para o seu benefício na manutenção do poder. Devemos estar atentos àqueles que desejam o poder, e não às suas ofertas, pois servem apenas para ludibriar a nossa mente do questionamento mais importante em todo o processo, ou seja: “quem é, de fato, o indivíduo diante de mim”. Aqui está um ponto crucial, ou seja, a análise daquele que quer deter o poder em detrimento das suas ofertas. A sabedoria está em não ofuscar a mente com o banquete da demagogia ou do favorecimento, embora esse seja o objetivo maior de quem deseja o poder político sobre nós.

Em segundo lugar, devemos cultivar o controle sobre o desejo desenfreado do favorecimento. Muitos lutam pela aquisição de bens materiais não importando os meios. Estão dispostos a trocar o próprio voto por favores que vão desde alguns tijolos até cargos comissionados promissores. Todos os meios precisam ser usados (veja a metáfora da faca na garganta) para evitar o vexame da concupiscência. Além do que, os bens podem bater asas, fazendo-me perceber que tudo não passou de inveja e tolice. A integridade pessoal não pode estar à venda, mesmo que o preço oferecido seja extremamente tentador. A honra é impagável!

Em terceiro e último lugar, devemos saber que a grande parte dos poderosos é falsa e interesseira. Na maioria dos que tentam ganhar o nosso voto, encontramos a falsidade peculiar àquele que barganha. Seu olhar sobre nós mensura cada oferta doada para posterior cobrança. Não é de coração, mas de interesse. A metáfora do vômito aponta para o momento em que as lisonjas perdem o sentido, pois se nos deixarmos seduzir devemos saber de antemão que tudo terminará no asco do produto regurgitado, o belo aparente se torna nojento e vergonhoso.

Esta reflexão é salutar, principalmente em nossa cultura onde se vende voto por doações dos bens públicos. Aliás, a apropriação indevida da coisa pública é o grande câncer que paira sobre a sociedade. Nós que somos cristãos devemos impedir que a sedução nos transforme em um semelhante ao político vil e inescrupuloso. O desejo de se dar bem é a armadilha mordaz diante de nós. Que nossa maturidade avalie aquele que tenta nos convencer do voto para que sejamos honestos e impagáveis nas nossas convicções e escolhas. Lembremo-nos que o político não deve favorecer a nossa vida particular em detrimento da sociedade. Mesmo que pensemos no favorecimento de uma denominação em particular, mas isso não pode sufocar o bem público maior. Sejamos maduros, sejamos crentes, sejamos honestos, SEJAMOS DIFERENTES!

Próximo artigo: REFLEXÕES EM TEMPO DE ELEIÇÃO (2 de 4): Lidando com os políticos – Igreja e Sociedade

CRIADOR E CRIATURA: Vontade e Relacionamento

Quando pensamos sobre a natureza e a humanidade que nela reside, muitas discussões surgem para se entender de que maneira Deus se relaciona com estas instâncias. Ao tomarmos conhecimento dos vários movimentos que buscam as respostas na Filosofia e na Teologia dissociada das Escrituras, percebemos que não tem sido tão simples a compreensão de como Deus age sobre o universo criado e de que maneira ele reina como soberano. E as tentativas no âmbito teológico extra bíblico e filosófico demonstram que este debate está longe de chegar a um consenso entre os seus principais pensadores.

O meu objetivo aqui é, primeiramente, elencar alguns exemplos dos equívocos cometidos nesta visão do Criador e criação, incluindo o ser humano. Em seguida desejo propor um modelo reformado da soberania de Deus nesta relação.

O primeiro que menciono aqui é o que conhecemos por Panteísmo, teoria que desconhece a distinção entre Criador e criatura, ou seja, Deus está em tudo (numa perspectiva material) e tudo está em Deus (numa perspectiva ideal). A existência e organização do universo ocorrem pela ação divina que é a própria natureza como entidade que segue seu próprio curso. Não há separação entre o espiritual e o material; o metafísico e o físico, a religião e o naturalismo. Nesta relação entre Deus e a natureza, o que ocorre é a homogeneização. Muito próximo a este pensamento encontramos o Panenteísmo, que afirma estar Deus aprendendo com o desenrolar da trajetória humana e do Universo, ou seja, a maturação divina depende da natureza. O panteísmo, portanto, propõe que o conhecimento da divindade está na apreensão da natureza e seus atributos.

O segundo exemplo que quero mencionar é o que conhecemos por Deísmo, teoria largamente utilizada pela modernidade empírica pós-medieval. Esta linha de pensamento não negava a existência de Deus, mas negava sua interferência direta e pessoal na natureza. Aceitam que o universo foi criado sob leis rígidas que regem tudo, dispensando, por força destas leis naturais, a presença do Criador. Uma analogia muito utilizada é a do relojoeiro, onde Deus é comparado a um grande relojoeiro do Universo que deu cordas na natureza que passou a funcionar desde então. Nesta relação o que ocorre é o afastamento. E o mais importante para o Deísmo é a descoberta das leis naturais para posterior domínio destas leis.

O terceiro exemplo que menciono aqui é o Teísmo, visão que crê na distinção entre Deus e a natureza, bem como na interferência direta do Criador sobre a criação. Mas esta área de pensamento, longe de ser coesa, se desdobra em vários segmentos. Como exemplo, cito a Teologia Arminiana que atrela a ação de Deus à sua presciência sobre o livre arbítrio humano, ou seja, Deus controla a natureza, mas não controla o homem que é senhor do seu futuro. Quanto à salvação, Deus “escolhe” porque de antemão já sabia que o referido iria se converter. Aqui encontramos uma contradição interna na argumentação, pois escolha é um ato deliberado, livre e soberano do sujeito em detrimento do objeto. Mas é assim que pensam. Deus controla tudo, menos o livre arbítrio do homem. Um outro exemplo mais recente do Teísmo Arminiano é o Teísmo Aberto (também conhecido como Teologia Relacional) onde a soberania divina inexiste diante do Universo. O próprio tempo serve apenas como parâmetro para que Deus viva agrilhoado a esta realidade, pois sua vivência ocorre como a natureza e como o homem, ou seja, em um eterno continuum, repleto de surpresas e inesperados acontecimentos. Logo, para se conhecer a Deus, deve-se conhecer o homem e sua trajetória neste mundo, uma vez que tais práticas são paralelas às práticas de Deus.

Todas estas visões, sem exceção, focalizam o homem e a natureza como centro principal para a compreensão de Deus e seus atos. A fonte primária está na revelação meramente subjetiva ou, numa palavra mais técnica, no humanismo pós-renascentista.

Ao contrário destas argumentações temos a concepção Teísta Reformada sobre a relação entre Deus e a natureza. Esta visão pode ser traduzida pela doutrina da Providência. A Confissão de Fé de Westminster, ao definir este ponto diz no Capítulo VI:

“Pela mui sábia providência, segundo a sua infalível presciência e o livre e imutável conselho de sua própria vontade, Deus, o grande Criador de todas as coisas, para o louvor da glória de sua sabedoria, poder, justiça, bondade e misericórdia, sustenta, dirige, dispõe e governa todas as criaturas, todas as ações delas e todas as coisas, desde a maior até a menor.”

Deus não apenas criou tudo do nada por sua bendita e poderosa palavra, mas sustenta todo o Universo pessoalmente de forma geral (a natureza e a humanidade) e de forma especial (os eleitos ao seu Reino). Nada escapa ao seu divino controle conforme a Palavra nos afirma. Vejamos alguns destes textos.

Em I Crônicas 29:11, 12 encontramos a seguinte afirmação sobre o Universo:

“Teu, SENHOR, é o poder, a grandeza, a honra, a vitória e a majestade; porque teu é tudo quanto há nos céus e na terra; teu, SENHOR, é o reino, e tu te exaltaste por chefe sobre todos. Riquezas e glória vêm de ti, tu dominas sobre tudo, na tua mão há força e poder; contigo está o engrandecer e a tudo dar força.”

E em Salmos 139:13 a 16 temos a declaração sobre nós, seres humanos:

“Pois tu formaste o meu interior tu me teceste no seio de minha mãe. Graças te dou, visto que por modo assombrosamente maravilhoso me formaste; as tuas obras são admiráveis, e a minha alma o sabe muito bem; os meus ossos não te foram encobertos, quando no oculto fui formado e entretecido como nas profundezas da terra. Os teus olhos me viram a substância ainda informe, e no teu livro foram escritos todos os meus dias, cada um deles escrito e determinado, quando nem um deles havia ainda.”

Quanto à natureza e suas manifestações, encontramos em Jó 36:26 a 37:13 o seguinte:

“Eis que Deus é grande, e não o podemos compreender; o número dos seus anos não se pode calcular. Porque atrai para si as gotas de água que de seu vapor destilam em chuva, a qual as nuvens derramam e gotejam sobre o homem abundantemente. Acaso, pode alguém entender o estender-se das nuvens e os trovões do seu pavilhão? Eis que estende sobre elas o seu relâmpago e encobre as profundezas do mar. Pois por estas coisas julga os povos e lhes dá mantimento em abundância. Enche as mãos de relâmpagos e os dardeja contra o adversário. O fragor da tempestade dá notícias a respeito dele, dele que é zeloso na sua ira contra a injustiça. Sobre isto treme também o meu coração e salta do seu lugar. Dai ouvidos ao trovão de Deus, estrondo que sai da sua boca; ele o solta por debaixo de todos os céus, e o seu relâmpago, até aos confins da terra. Depois deste, ruge a sua voz, troveja com o estrondo da sua majestade, e já ele não retém o relâmpago quando lhe ouvem a voz. Com a sua voz troveja Deus maravilhosamente; faz grandes coisas, que nós não compreendemos. Porque ele diz à neve: Cai sobre a terra; e à chuva e ao aguaceiro: Sede fortes. Assim, torna ele inativas as mãos de todos os homens, para que reconheçam as obras dele. E as alimárias entram nos seus esconderijos e ficam nas suas cavernas. De suas recâmaras sai o pé-de-vento, e, dos ventos do norte, o frio. Pelo sopro de Deus se dá a geada, e as largas águas se congelam. Também de umidade carrega as densas nuvens, nuvens que espargem os relâmpagos. Então, elas, segundo o rumo que ele dá, se espalham para uma e outra direção, para fazerem tudo o que lhes ordena sobre a redondeza da terra. E tudo isso faz ele vir para disciplina, se convém à terra, ou para exercer a sua misericórdia.”

O que se conclui é que Deus continua sustentando soberanamente a criação e os rumos da humanidade por seu infinito controle, isto é, sua vontade. É óbvio que, em se tratando desta vontade, alguns aspectos precisam ser avaliados e compreendidos, uma vez que há quatro tipos de manifestações diferentes da vontade divina, sempre demonstrando a mesma soberana providência sobre a criação.

Em primeiro lugar existe a vontade oculta de Deus aos seres humanos. Neste aspecto nada escapa do seu controle, pois não há surpresas para o soberano Criador. Pelo menos deve haver a sua permissão para que certos eventos ocorram, mas tudo, absolutamente tudo, acontece e só pode acontecer sob sua eterna e soberana determinação. Esta vontade, como já mencionei, está oculta à humanidade até o momento em que se torna fato vivido ou presenciado nas práticas humanas. Há muitos exemplos na Palavra, como o caso de José do Egito que, diante de sua situação de sofrimento, traição e abandono familiar, afirmou em Gêneses 45:5–8; 50:20:

“Agora, pois, não vos entristeçais, nem vos irriteis contra vós mesmos por me haverdes vendido para aqui; porque, para conservação da vida, Deus me enviou adiante de vós. Porque já houve dois anos de fome na terra, e ainda restam cinco anos em que não haverá lavoura nem colheita. Deus me enviou adiante de vós, para conservar vossa sucessão na terra e para vos preservar a vida por um grande livramento. Assim, não fostes vós que me enviastes para cá, e sim Deus, que me pôs por pai de Faraó, e senhor de toda a sua casa, e como governador em toda a terra do Egito. (...) Vós, na verdade, intentastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem, para fazer, como vedes agora, que se conserve muita gente em vida.”

E o que dizer da morte violenta do Diácono Estevão que, por soberania divina, serviu para que a Igreja se espalhasse por Roma e até fora das suas fronteiras? O próprio texto do livro de Jó supracitado demonstra que as catástrofes naturais, como terremotos, maremotos, tsunamis, enchentes etc. acontecem por decreto direto de Deus para a aplicação da sua justa disciplina, bem como o exercício da sua bendita misericórdia.

Em segundo lugar existe a vontade que reflete tudo aquilo que alegra ou entristece o coração de Deus. Esta vontade nos é revelada, pois ninguém pode negar que há alegria no céu quando um pecador se arrepende, mesmo que este arrependimento ocorra devido à predestinação. Ou ainda, ninguém nega que Deus não tem prazer na morte do ímpio, embora esta morte tenha sido decretada. Ou ainda, que a morte do justo lhe seja cara, embora ocorra debaixo de sua soberania. No Dia do Juízo Final Deus não sentirá alegria e prazer na condenação do ímpio, embora esta condenação ocorra por sua justa e divina vontade. É por este motivo que Deus se alegra com a nossa obediência, mas se entristece ou até mesmo se irrita com a nossa desobediência.

Em terceiro lugar existe a vontade de Deus que nos é revelada claramente. Esta vontade está registrada em sua divina Palavra quando expressa que o Criador deseja para as criaturas como, por exemplo, o nosso arrependimento, a nossa santificação etc. Ninguém está autorizado a descumpri-la, embora ao homem se tenha dado a capacidade de contrariá-la. Também ninguém pode responsabilizar a Deus pelo pecado cometido dizendo que, se Deus é soberano, logo ele deve ser o principal culpado pelas atitudes erradas do ser humano, pois neste caso o que ocorre é a permissão divina para que o homem possa, embora não tenha este direito, de contrariar esta vontade revelada.

Há dois exemplos claros que quero mencionar. O primeiro é o caso do pecado de Davi quando mandou fazer o recenseamento do povo de Israel. Em I Crônicas 21:1 encontramos:

“Então, Satanás se levantou contra Israel e incitou a Davi a levantar o censo de Israel.” Mais a frente encontramos nos versos 7 e 8: “Tudo isto desagradou a Deus, pelo que feriu a Israel. Então, disse Davi a Deus: Muito pequei em fazer tal coisa; porém, agora, peço-te que perdoes a iniqüidade de teu servo, porque procedi mui loucamente.”

Quando olhamos para a narrativa paralela em 2 Samuel 24:1, 10, assim se lê o texto:

“Tornou a ira do SENHOR a acender-se contra os israelitas, e ele incitou a Davi contra eles, dizendo: Vai, levanta o censo de Israel e de Judá. (...)Sentiu Davi bater-lhe o coração, depois de haver recenseado o povo, e disse ao SENHOR: Muito pequei no que fiz; porém, agora, ó SENHOR, peço-te que perdoes a iniqüidade do teu servo; porque procedi mui loucamente.”

O que quero ressaltar aqui é que todo o processo aconteceu sem que em nenhum momento Deus deixasse de estar no controle, pois mesmo Satanás só pode agir sob a soberania divina. Por outro lado, Davi não foi isento de seu pecado que, conseqüentemente, não deixou de ser vil e revoltoso.

Outro exemplo semelhante é o de Judas Iscariotes no Novo Testamento, pois sua atitude foi instrumento para que os eternos decretos de Deus se cumprissem para a redenção dos eleitos, mas isto não isentou Judas de sua culpa e nem o seu pecado deve ser considerado ínfimo, ao contrário, sua atitude foi covarde e detestável.

Em último lugar menciono a vontade de Deus na criação. A natureza, desde o momento em que fora criada, funciona conforme o querer de Deus. A própria Física reconhece que há leis inalteráveis que regem a natureza. Diga-se de passagem, estas leis, inclusive, contrariam a falácia evolucionista. Basta observar as leis da termodinâmica, ressaltando a lei da entropia. Basta lembrar o Salmo 19: 1 – 6:

“Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos. Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite. Não há linguagem, nem há palavras, e deles não se ouve nenhum som; no entanto, por toda a terra se faz ouvir a sua voz, e as suas palavras, até aos confins do mundo. Aí, pôs uma tenda para o sol, o qual, como noivo que sai dos seus aposentos, se regozija como herói, a percorrer o seu caminho. Principia numa extremidade dos céus, e até à outra vai o seu percurso; e nada refoge ao seu calor.”

Quero concluir dizendo que as Escrituras demonstram as várias faces da vontade de Deus que por sua vez, possuem por fundamento sua soberania. Em nenhum momento da trajetória do Universo e, conseqüentemente, da trajetória humana Deus deixou de estar no controle, caso contrário, como as profecias trazidas no Velho Testamento poderiam se cumprir? Concomitante a isto, todos nós somos responsáveis pelo nosso pecado, seja pela escolha que fizemos em nossos pais no Éden, seja pela livre-agência, seja pela desobediência da sua santa Lei. Resta-nos apenas crer nesta verdade e sempre estar submisso em obediência. A doutrina da Providência é tão bíblica quanto necessária para que compreendamos a linearidade dos acontecimentos, ou seja, que em tudo há uma finalidade: a glorificação e santificação do excelso nome do nosso Deus. E é somente por esta perspectiva que podemos compreender as Alianças de Deus para com o seu povo e o glorioso final reservado à sua igreja. Aconteça o que acontecer, Deus é soberano, Deus é providente, Deus é altíssimo.

SOLA SCRIPTURA

POETA AMADOR ou AMANDO E COMPONDO

Recentemente li um texto escrito por um pastor pentecostal muito otimista para o meu gosto. Diante de tudo que tenho visto e acompanhado me deu vontade de compor uma poesia. Sei que não é lá essa coisa toda, mas, pelo menos, é sincera. Então, vamos lá:

Mundo mal, mundo vil, mundo indecente,
Para que sorrir? Para que esperar? Para que estar contente?
Que esperança há em ti, mundo imundo, carregado de iniqüidade?
Só há desconfiança na confiança que se frustra.
Por que buscar alegria numa bondade mentirosa, numa fonte que maquina o mal?
Não há esperança, não há amor. E por mais que eu tente achar no tal,
Decepciono-me por buscar água límpida na fonte estagnada, imoral.
Meus olhos devem te contemplar, oh Deus!
Dos olhos da maldade que olham a grandeza de um olhar de amor.
Não perder tempo e ter tempo para te contemplar.
Sim, minha esperança é o Senhor, soberano Senhor,
Que de um enraizado faz um peregrino, andarilho para a glória.
Sim, minha esperança é o Senhor, soberano Senhor,
Que de um destruído faz um construtor, pessoa sóbria.
Dos ruídos na perdição, que ruem ao som da morte,
Posso clamar pela esperança sob o som triunfante do Deus vivificante.
Com o que se alegrar? Não com o efêmero abjeto, mas com o eterno sublime.
Não devo odiar aqueles que falham comigo, não há surpresas,
Não devo esperar por este mundo aborrecível, não há surpresas,
Somente o Senhor é o motivo da minha alegria, não há surpresas.
Miserável é aquele que tenta poetizar onde não há inspiração,
Maldito o que confia na ruína, desgraçado o que espera nas surpresas.
Bendito é o Senhor, única fonte da poesia, cacimba da prosa.
Somente o Senhor, amoroso Senhor, meu escolhedor.
Como bradar? Sim, há o que bradar, não desabafando, mas acertando:
Mundo mal, mundo vil, mundo indecente, de ti saí, dissabor que não me instiga.
Deus bondoso, Deus precioso, Deus justo, de mim te achegaste, amor que me inspira.

POVOS EXTINTOS E A PREDESTINAÇÃO – uma reflexão particular sobre a justiça divina

Muito se tem escrito sobre a Predestinação. E os defensores dessa doutrina usam como fundamento as Escrituras, fonte inequívoca das informações sobre a total e absoluta soberania de Deus. É por esse motivo que a Teologia Reformada não se cansa em afirmar sobre a morte de Cristo pelos eleitos, uma vez que o Senhor já determinou de antemão aqueles que iriam ser salvos. Dito isto, esclareço que o meu desejo aqui não é argumentar naquilo que já está fartamente divulgado e publicado por meio da Teologia Bíblica e Sistemática. Meu desejo aqui, conforme expresso no título acima, é refletir sobre o tema Predestinação a partir de um ponto mais focal, particular e empírico: os povos e etnias que já desapareceram no passado remoto.

Por meio dos achados arqueológicos e da etno-história somos informados sobre os muitos povos que surgiram, se desenvolveram e sucumbiram sem deixar um membro sequer. Foram nações que, embora tenham alcançado momentos de glória ou de vantagens tecnológicas da época, em um dado momento da sua trajetória deixaram de existir. Alguns desapareceram pela interação cultural; outros por relacionamento interétnico; outros minguaram pela grande quantidade de batalhas sangrentas, epidemias ou escassez de alimentos; outros foram brutalmente dizimados por povos inimigos mais numerosos ou poderosos nas artes bélicas.

Até aqui não há novidade nenhuma, e imagino que uma pergunta pode surgir: “qual a relação entre a existência e extinção de povos antigos e a predestinação de Deus à salvação?” Minha resposta e proposta neste artigo é que as duas realidades promovem uma reflexão fundamental no que diz respeito à justiça de Deus. Quero, então, ponderar sobre este contexto tomando por base as duas maiores afirmações teológicas sobre a salvação: a arminiana e a reformada.

Segundo a Teologia Arminiana, os indivíduos são dotados de livre-arbítrio, ou seja, Deus não interfere nas decisões humanas e está sempre aguardando o homem decidir se quer ou não a expiação que, por definição, abrange toda humanidade. Com isso afirmam a necessidade vital do contato com a informação sobre o plano de salvação para que as pessoas tenham a oportunidade de escolher ou resistir à salvação. Bem, se para os arminianos isso reflete a justiça de Deus, também é neste ponto que encontramos um grande paradoxo quando pensamos nos povos supramencionados. Todos concordam que muita gente viveu em épocas em que seria humanamente impossível conhecer o Evangelho. A falácia mórmon da visita de Cristo à América não passa de uma lenda espetacular gerada pela mente frutífera de Joseph Smith. Neste caso, então, todos concordam que muitas etnias surgiram, viveram e desapareceram sem a possibilidade de um evangelista se infiltrar no meio deles para dar-lhes a oportunidade de escolha. E isto ocorreu sem que houvesse culpa ou negligência da parte do povo de Deus. Por exemplo, como Abraão poderia em sua época falar do Senhor Deus aos povos do extremo oriente? Ou como Isaías poderia pregar aos povos distantes do continente europeu? Ou como Filipe poderia evangelizar sobre Cristo aos ameríndios nas terras baixas da América do Sul? Vejam que aqui não há negligência, o que há é a impossibilidade temporal, geográfica e cultural, pois o progresso da evangelização estava atrelado às limitações naturais do homem em seu tempo e espaço. O próprio crescimento da igreja acompanhou o ritmo lento da caminhada humana em seu desenvolvimento tecnológico e conhecimento da existência de outros povos em regiões remotas.

Agora pensemos no futuro e a presença destes povos diante do trono de Deus no dia do juízo. No momento do veredicto divino, imaginemos alguém bradar: “como posso ser condenado por algo que não pude escolher?” Percebam que o arminianismo possui este corolário uma vez que a salvação individual depende da escolha de cada um. A dificuldade surge quando não se pode escolher sobre aquilo que nunca se ouviu. Claro que se pensarmos em épocas posteriores ao século XVI concluiremos que as igrejas possuíam a responsabilidade de enviar missionários ao continente americano. Mas, e antes quando ninguém conhecia a existência dos povos indígenas ou do longínquo continente? Como Deus pode ser justo em condenar estes povos sem ter dado a eles a oportunidade de escolha? Aqui temos um problema moral grave, ou seja, se o arminianismo está com a razão, o resultado é um ato injusto da parte de Deus, pois sua condenação cairá sobre pessoas que nunca tiveram contato com a sua Lei especial que menciona a possibilidade da salvação. Se, porventura, os teólogos lançarem mão sobre o texto que afirma sobre o fato do homem ser indesculpável pela revelação natural, ainda assim sabemos que a salvação vem pelo ouvir a Palavra de Deus. E o problema criado por este ramo teológico permanece.

Diante deste sério paradoxo, percebemos que a visão reformada é, sem dúvida nenhuma, muito mais coerente, uma vez que sempre vai resultar num Deus eternamente justo em seu caráter e atos. Isto concorda com uma posição mais bíblica: a Predestinação.

Segundo a Teologia Reformada, Deus, em sua soberana vontade, elegeu incondicionalmente o seu povo, retirando-o da condenação, da morte espiritual e da depravação total, situações advindas pela escolha dos nossos primeiros pais: Adão e Eva. A conversão só ocorre aos eleitos que, ao compreenderem o plano de salvação divino pela evangelização e pela iluminação do Espírito Santo, não podem resistir à graça. Por isso há um ponto muito importante a ser destacado: a expiação de Cristo alcança apenas os predestinados. Em palavras mais simples, Deus, soberanamente, elegeu somente alguns para a salvação eterna. Conseqüentemente, o pecador será condenado, não por que deixara de escolher a Cristo mediante a pregação do Evangelho, mas por que está em depravação total pelo pecado ocorrido no Éden. Ninguém, neste caso, poderá dizer, no dia do julgamento final, que Deus foi injusto por não ter dado a chance de escolha entre Cristo como salvador e a condenação. Pelo contrário, todos, sem exceção alguma, tremerão diante da justiça de Deus que é perfeita, misericordiosa e absoluta.

Aqui neste contexto podemos inserir os antigos povos que surgiram, viveram e desapareceram em tempos imemoriais sem ouvirem uma palavra sequer do Evangelho. Eles serão condenados justamente, pois para isto foram destinados e, em Adão, isto escolheram.

Concluo dizendo que não é meu objetivo nesta reflexão minorar a responsabilidade da inadimplência missionária. Há uma ordem específica para que preguemos o Evangelho a toda criatura, não fazê-lo é pecar por desobediência. Até porque a salvação vem pelo ouvir, por isso todo crente possui esta dívida para com os descrentes. O que quero ressaltar aqui é a situação de povos antiqüíssimos que nunca ouviram a palavra de salvação devido ao momento em que viveram, paralelo ao desenvolvimento que a Igreja passava temporal e geograficamente. Muitos arminianos nos acusam de imputar ao Senhor Deus atos de injustiça por retirar do homem o livre-arbítrio. Mas o problema é muito mais grave do outro lado, pois se Deus supostamente deixou a escolha ao homem em decidir entre a salvação ou não, qualquer um que não tenha ouvido sobre esta salvação, sendo-lhe retirada a possibilidade de opção, sentirá o direito de fazer uma afirmação absurda e totalmente inverídica: “Deus é injusto em alguns casos na trajetória humana”. É claro que não é assim que encontramos nas Escrituras. E, embora esta reflexão esteja pautada muito mais na busca de uma coerência empírica, seu resultado aponta para o que já conhecemos conforme registrado nas Escrituras, ou seja, nosso Deus é eternamente soberano, misericordioso, livre e, acima de tudo, santo e justo.

Pragmatismo versus Fidelidade

Uma das características mais comuns em uma sociedade humana é valorizar e buscar o sucesso. Em palavras mais diretas, o ser humano sempre busca os meios utilitaristas para ser um bem-sucedido ante seus pares e admiradores. A cultura dita ocidental navega sobre as águas caudalosas da concorrência e da visão empresarial, sofrendo as imposições estatísticas onde os números contam mais alto que a ética, o pudor e o bom senso. O desejo de ganhar sempre e estar à frente dos concorrentes são a palavra de ordem do sistema em que vivemos. Trata-se das lutas de classificação em meio às concorrências acirradas.
Com relação a algumas igrejas cristãs, pelo que tenho percebido, a prática tem sido a mesma. Se perguntarmos hoje qual a evidência do sucesso em uma igreja que se diz cristã, sem medo de errar, seus líderes apontariam ao número de membros já “conquistados” através do seu método “infalível”. “Temos hoje três mil membros em apenas dois anos de trabalho e isso se deve à nossa visão de ministério” poderia bradar algum pastor jactancioso de uma entidade qualquer. O mais triste é que neste caldeirão vale tudo: promessa de prosperidade, capacidade de tornar alguém um líder em poucos meses, grupos que se reúnem em casa, rede ministerial, louvor animado, cura de enfermidades, encontros secretos para sessões de psicanálise “evangélica” etc. Em outras palavras, o que vale é o método e, conseqüentemente, os números (membros) angariados. O que mais chama a atenção, em minha opinião, é o desmantelo teológico, a intolerância, o desrespeito para com outros segmentos mais simples e modestos e a valorização do método inovador em detrimento de um ensino bíblico responsável, da comunhão e da visão de Corpo, desembocando no proselitismo explícito (cooptação de membros de outras igrejas).
Seria isto cristianismo? Embora cada grupo reivindique a autoridade bíblica para o seu método – por vezes sem ética – duvido muito que o modelo proposto nas Escrituras seja qualquer um destes. Se olharmos com sinceridade para a Palavra, vamos perceber que não existe ênfase nos números de membros. Excetuando Atos 2: 41, em nenhum outro lugar há a menção do número de membros em uma igreja, aliás, o próprio apóstolo Paulo afirma que na cidade de Corinto havia batizado apenas dois indivíduos e uma família. O mesmo apóstolo, ao dar seu relatório no final da vida, não informou a quantidade de pessoas que havia experimentado a conversão com seu procedimento evangelístico (que era a simples pregação do Evangelho), mas disse: “... combati o bom combate, completei a carreira, guardei a fé...”, isto por que ele, Paulo, sabia muito bem que as conversões não dependiam de algum método ou modelo “divinamente revelados”, mas sim, pela ação soberana de Deus, ou seja, cada igreja deveria ser fiel enquanto “... o Senhor lhes acrescentava diariamente os que iam sendo salvos" (Atos 2: 47 – grifo meu). Esta afirmação é desconcertante, imagino, pois retira completamente o mérito dos pobres e equivocados líderes das massas e recoloca-o em seu devido lugar: a soberania de Deus. O que pensar, por exemplo, das palavras de Paulo quando diz: "Logo, tem ele [Deus] misericórdia de quem quer e também endurece a quem lhe apraz" (Rm 9: 18)?

Não quero aqui desestimular o ardor evangelístico, tal ato seria uma blasfêmia contra a vontade de Deus, muito pelo contrário, não devemos medir esforços para pregar o evangelho aos pecadores. O que quero ressaltar é que os eleitos irão se converter independente do método que usamos. Não importa se o pregador é um visionário intelectual ou um camponês que mal sabe se expressar; não importa se todos estão na visão da moda ou fora dela; não importa se a igreja passou a ter três mil membros em dois meses ou se é um pequeno rebanho com poucos membros em uma cidade onde o evangelho é perseguido violentamente. " Assim, pois, não depende de quem quer ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia" (Rm 9: 16).

Creio que está na hora dos pastores e líderes atentarem para a exposição honesta da Palavra de Deus, para o ardor evangelístico e, principalmente, para a humildade e a ética no cumprimento das Escrituras. Em outras palavras, o principal é ser fiel. Quanto aos que irão se converter, bem, isto é com a soberania do Deus único sobre todos.


Sola Scriptura.
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