VIREI DOUTOR, E AGORA?


Após quatro anos de intensa pesquisa, pude concluir uma tese de 365 páginas sobre a história da Unevangelized Fields Mission. Nela discorro acerca da evangelização dos Waiwai, moradores na região do alto Essequibo, na então Guiana Inglesa. Temas como: conversão, letramento, encontros culturais, estratégias de evagelização e adoção foram abordados com paixão e rigor metodológico. Foi bom ouvir da banca, no dia 19 de agosto do corrente ano, os laudatórios acerca do trabalho final. Como resultado recebi da Universidade Federal do Rio de Janeiro o grau de Doutor.
Houve também um culto em ação de graças singular promovido pelo meu colega e pastor auxiliar, Rev. Heleno Montenegro Filho. Pude cantar com alegria “Deus, somente Deus” e ouvir a edificante mensagem do meu grande amigo (nos moldes de Provérbio 18: 24b), Rev. Marcos Fernandes de Freitas, sobre Jó 28, que trata da sabedoria divina em contraste com as conquistas humanas. Logo após o culto recebi uma singela homenagem que incluía a comemoração do meu aniversário. Vi ali, no mesmo espaço, colegas de ministério, colegas da universidade e muitas ovelhas amadas. Todos me felicitaram pelo ano a mais de vida e pelo doutorado concluído com êxito.
Esse pequeno relato serve apenas para contextualizar as indagações que se passam na minha mente. Há algumas reflexões sobre o que significa ser doutor. Qual o sentido de ter o nome ampliado e antecedido por duas letras – Dr. – além do título de professor e reverendo já concedidos.
Segundo a etmologia, o termo doutor vem do latim docere, que significa ensinar. Das outras sete definições diferentes, há a mais pujante que fala sobre o douto, o sábio e o erudito. De acordo com a academia, o título credencia a carreira de qualquer profissional, habilitando-o a executar e orientar pesquisas em uma determinada área do conhecimento. Há a liberdade de executá-las e orientá-las. Além disso, o doutorado é o ponto mais avançado da graduação, embora tenham criado recentemente o pós-doutorado, um tipo de crivo que ressalta as excelências em determinado assunto. Mas isso não concede titulação, ninguém é pós-doutor, trata-se apenas de um reconhecimento. O título de doutor pode ser adquirido de três maneiras: defesa de uma tese, notorius saber (casos restritíssimos) ou honoris causa. Há ainda os fraudulentos que compram o título ou plagiam trabalhos já publicados ou defendidos.
Aqui acho que cabe um questionamento: será doutor apenas os que são reconhecidos pela academia? Minha resposta imediata é: claro que não! Há outros casos em que o título é usado largamente.
No Brasil, por ordem de sua alteza, o Imperador Dom Pedro I, todo advogado, médico ou engenheiro deve ser reconhecido como doutor, aliás, a maioria faz questão de ser tratado como tal. Outros acreditam que todo ministro da Palavra merece o mesmo título. O Manual de Culto adotado pela Igreja Presbiteriana do Brasil, por ocasião da ordenação de alguém ao ministério pastoral, diz: “O Ministro da Palavra é chamado (...) Doutor, porque expõe a Palavra, e com sã doutrina admoesta e convence aos contradizentes.” (MC, p. 71). Nesse caso, todos os ministros expositores e doutrinadores devem ser reconhecidos como doutos.
Há também os brincalhões, como os meus cunhados, cunhadas e algumas ovelhas que sempre trataram os amigos como dotô. É bom ouvi-los dizendo “E aí, dotô?” ou como minha grande amiga Simone Quaresma que sempre me cumprimenta dizendo “diga, dotô?”
Os flanelinhas, engraxates, feirantes e vendedores ambulantes também reconhecem em todo freguês o título. “E aí doutor, vai comprar a mercadoria?” Assim são interpelados os consumidores em potencial. Portanto, há muitos doutores ao nosso redor, a polissemia é tão rica quanto diversificada.
Mas retornando ao ponto inicial, o que para mim significa esse título? Um colega da universidade, por ocasião da homenagem feita por minha igreja perguntou: “já se sente doutor?” Eu mesmo já brinquei comigo mesmo dizendo que saí da esfera do Senhor Jesus (mestre) e saltei para o covil de seus inimigos (os doutores da Lei). Todavia, pensando seriamente sobre o tema, creio que há quatro pontos a serem considerados quando se pensa nesse título acadêmico:
1) O doutorado é o reconhecimento pelo labor dispensado. Negar o brutal esforço para chegar a esse ponto da academia é ser, no mínimo, hipócrita. Há seis anos, ainda no início do mestrado, venho pesquisando, lendo, entrevistando e decifrando exaustivamente. Foram textos em inglês (a esmagadora maioria), outros em espanhol (considerado na UFRJ como língua mater), vi-me diante do francês e do italiano, debrucei-me sobre o grego neotestamentário, até o waiwai tive que analisar (nesse caso com a ajuda inestimável de Irene Benson, André Souza e Edson Too-Too Waiwai). Foram semanas de ausência, de solidão no lar, de viagens entre o Rio, Boa Vista e região do Mapuera. Foram horas de reflexão e composição. O título que recebi foi o reconhecimento por esse trabalho realizado. Não nego a alegria que senti quando a banca, em pé, solenemente, afirmou ter eu recebido o grau tão almejado. Foi e é importante esse título, e por ele desejo o respeito e o reconhecimento de meus pares;
2) O doutorado também é importânte no reino de Deus. No ano de 1985, em meu primeiro ano no Seminário, o querido amigo, Rev. Elias Medeiros, na época professor de Evangelismo, disse algo que me afetou profundamente. Ele afirmou que o meio protestante deveria possuir o maior número possível de mestres e doutores para que a voz vinda da igreja fosse considerada de igual modo como os discursos da Igreja Católica e de outras instituições. Eu concordo com isso. Esse título de “cidadão romano” fortalece o discurso diante de uma sociedade elitista e meritocrata. Não significa dizer que a voz dos que despossuem qualquer título acadêmico não contenha profundidade, inteligência ou relevância. A questão aqui não é quem fala, mas como ele é ouvido em determinados setores da sociedade. Para que as academias e os meios intelectuais pelo menos ouçam o que se está dizendo, o título é importante. Há vários porta-vozes na igreja. O grupo intelectual faz parte desse time multiforme. Assim como é importante o jardineiro, da mesma forma o pesquisador. Tudo e todos por Cristo e por sua Igreja. Além disso, menciono a importância e a contribuição da própria pesquisa nas mais diversas áreas, supondo que o resultado estará subordinado à visão bíblica, em se tratando de um crente fiel, conforme o próximo ponto.
3) O doutorado deve ser balizado numa cosmovisão correta. Minha linha de pesquisa é a História Cultural. Quem me conhece de perto sabe disso. Sigo a Teoria da Prática e sou fascinado pelos estudos que envolvem a cultura simbólica e cotidiana como tema. Rechaço a visão esquerdista e estruturante como metodologia. Acho o marxismo panfletário e chato, embora reconheça seu lugar no desenvolvimento epistemológico. Ao mesmo tempo, todos os meus pressupostos estão subordinados à cosmovisão reformada. Para mim é incoerente qualquer dicotomia metodológica do tipo: na academia sou laico, na igreja sou teológico. Isso não existe! Antes de ser doutor, sou teólogo bíblico, além de apreciar a teologia sistemática. Sou crente no Senhor Jesus e creio nos aspectos básicos que se alocam sob a soberania do Senhor Deus. A inspiração total das Escrituras, a veracidade não relativizada das narrativas e a inerrância doutrinária são o ponto absoluto de partida. Meu olhar para o mundo passa antes pelo trono do Altíssimo, a quem temo para ser sábio;
4) No doutorado, a nossa suficiência vem do Senhor. Quando alguém acha que é melhor que o seu semelhante por algo que possui, imediatamente ele se torna estrado dos pés de quem está ao seu redor. Muitas pessoas dizem a mim que sonham em se tornar um doutor. Eu respondo a elas dizendo que esse título não é um patamar para a vida, mas uma escolha profissional, um capital simbólico. Somente os que pensam em trabalhar na área da pesquisa e da docência é que devem se preocupar com isso. Logo, eu sei que não me tornei superior a ninguém com o título. Aliás, conheço as minhas limitações e procuro sempre desenvolver a auto-crítica, sem a qual corremos o risco de nos tornar pífios, impertinentes, boçais e ridículos. Meu pai sempre inculcou na minha mente o texto de 2 Coríntios 3: 5 que diz: "Não que, por nós mesmos, sejamos capazes de pensar alguma coisa, como se partisse de nós; pelo contrário, a nossa suficiência vem de Deus". O Senhor foi gracioso em fazer com que um pastorzinho fosse aclamado numa instituição como a Universidade Federal do Rio de Janeiro. Todo o mérito é dele, em mim apenas resta o usufruto dessa maravilhosa e imerecida misericórdia.
Bem, acho que no momento é o que penso sobre esse importante título alcançado. Espero que o Reino seja abençoado com tudo isso e, o mais importante, que o Senhor cresça e eu diminua.
Sola Scriptura.
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