Escrevi esta carta em resposta a uma dúvida sobre: "estratégia humana e soberania de Deus em missões" enviada por uma missionária no campo. O nome foi trocado por questões óbvias.
Querida Ana,
Em primeiro lugar, muito obrigado por ter escrito sobre este assunto. Eu me sinto honrado em poder pastorear os missionários que estão no campo, pode usar e abusar.
Quanto ao assunto que você escreveu, vamos lá. Quando eu vejo o processo de evangelização no geral, sempre gosto de analisar em duas dimensões que se complementam. Por um lado vejo a soberania de Deus, fato inequívoco fartamente registrado nas Escrituras. Lá encontramos, por exemplo, que o homem não pode buscar a Deus por si só (Rm 3: 10 – 18); também descobrimos que a própria fé é um dom de Deus (Ef 2: 8, 9), logo, não é o homem com sua estratégia evangelística que converte o pecador, é Deus que vai ao encontro dele e acrescenta-o ao rebanho.
Nesse contexto devemos pensar o seguinte: “então não importa como eu pregue, uma vez que é o Senhor quem converte?” Não, não é bem assim. A evangelização requer estratégia humana sim, eu até diria estratégia cultural. Um exemplo é a língua. Para que o Evangelho seja compreendido eu devo pregar em uma língua que o ouvinte compreenda. Já pensou alguém pregando em sawi em plena Praça da Sé em São Paulo? É neste ponto que ressalto o uso de uma estratégia, por mínima que seja, para que a proclamação faça sentido (At 18: 4; 19: 8; 1 Co 9: 19 – 23). Quando pensamos em evangelização transcultural, o assunto se torna complexo, pois mesmo que utilize uma tática absurda para pregar em uma praça, eu, todavia, estou impregnado da mesma cultura daquele que me houve, pelo menos em aspectos gerais – a representação subjetiva do mundo.
É por isso que "Missões transculturais" é algo que deve ser debatido com seriedade, principalmente no que diz respeito às estratégias que devem ser utilizadas. Pensando em missões indígenas ao longo do tempo podemos avaliar em como houve erros na introdução do Evangelho. No passado, os missionários acreditavam que somente com a língua do outro poderiam eficazmente pregar a Palavra. Engano! Até mesmo hoje, muitos missionários nunca ouviram falar sobre “perspectivismo ameríndio”, ou seja, que a representação do mundo por parte deles é absolutamente dispare da nossa representação.
Vou apenas pincelar esta questão para que você entenda melhor. Nossa visão ocidental é demarcada pela racionalidade. Nós só consideramos humano aquele que partilha de uma razão, ou, num termo mais filosófico, um espírito. Pense você mesma, por que os Yanomami são seres humanos? Sua resposta vai na direção do que estou escrevendo agora: “Eles possuem alma”; ou, “eles possuem razão, são racionais”. Nesta dimensão encontramos uma concepção rígida do “ser”, pois ou é humano ou é animal – isto é o princípio da racionalidade. É neste contexto que pensamos: “ou se é cristão ou não, ou o sujeito é convertido ou ele não é”.
Já a visão indígena foge completamente desta lógica, pois para eles o que torna alguém semelhante é o corpo e não o espírito – é o princípio da animalidade. Lévi-Strauss informa que, enquanto a Universidade de Salamanca discutia se o índio tinha alma ou não (princípio da racionalidade), os Asteca afogavam os europeus aprisionados para verem se tinham corpo ou não (princípio da animalidade). Animalidade porque o corpo é o ponto de vista, logo não há problema, por exemplo, de um xamã se tornar um porco do mato ou um colibri, para ele isso é perfeitamente normal, enquanto para nós se trata de êxtase, blefe ou possessão (representação ligada à alma ou espírito). Há uma citação de Hans Staden no século XVI sobre Cunhambebe que diz o seguinte: “(...) Cunhambebe tinha à sua frente um grande cesto cheio de carne humana. Comia de uma perna, segurou-m’a diante da boca e perguntou-me se também queria comer. Respondi: ‘Um animal irracional não come um outro parceiro, e um homem deve devorar um outro homem? ’ Mordeu-a então, e disse: ‘Jauára ichê’ (Sou um jaguar)”. Percebeu o contraste? Quando temos este tipo de informação passamos a entender a inconstância indígena com relação ao cristianismo e às frases do tipo: “no passado eu era crente, ontem eu era um xamã, hoje sou uma sucuri”.
Com relação aos Yanomami, recomendo que você leia a minha dissertação de mestrado onde trato da atuação dos missionários no passado, a visão cultural que tinham e como isso contribuiu para a evangelização desses índios.
Concluo dizendo que não estou tratando de conflitos de valores aqui. As Escrituras informam claramente sobre este assunto. O que estou discutindo aqui se trata um pouco daquilo que devemos utilizar para a comunicação do Evangelho. Por isso afirmo que as estratégias são importantes na evangelização. Dependendo da atuação inicial você pode abrir como fechar a possibilidade da comunicação do Evangelho numa cultura ágrafa. Não basta apenas aprender a língua e transcodificar o índio pela nossa representação cultural (animismo, racionalidade, “coerência”, pontos excludentes etc.), temos que compreender a forma como eles vêem o mundo e ajustam suas práticas nestas representações. Por outro lado, não nos esqueçamos que somente os eleitos irão se converter, mas isso pertence à vontade soberana e oculta do nosso Deus (só para deixar claro que o mérito não está na estratégia, mas sim em Deus usar ou não da sua misericórdia).
Bem, espero ter ajudado um pouco. Que Deus a abençoe muito no campo missionário e que o Espírito Santo a mantenha animada e firme em fidelidade – isto é o mais importante para uma missionária de Cristo.
Um abraço.
Alfredo.
P.S. Autores na área da Antropologia que recomendo para essa discussão:
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5 comentários:
O Senhor seja convosco, Pr Alfredo.
Sinceridade! é uma das disposições que mais admiro no cristão, o IDE fazer discípulos...e o IDE até os confins da terra. Não resta nenhuma dúvida,o Deus Onipotente,é Soberano. Posto que, a forma de evangelizar os índios e não achando que somente com eles deve-se um tato mais aveludado,mas agora estamos citando índígenas,requer realmente chamado, dons,frutos do espírito,acima de tudo a busca constante no exercício da Palavra Sagrada e muita oração. Que Deus conduza os missionários debaixo de sua graça e proteção e possa nos incomondar a estar intercendo por eles em todo tempo.E para essa irmã confirmo sua oração rogando ao Senhor Nosso Deus, que a ilumine e a use conforme os projetos divinos.Abs
Yolanda, obrigado pelo carinho!
Meu caro companheiro de lutas!
Gostei muito da sua carta resposta. Quero que saiba que eu sou o cara mais feliz do mundo e sinto-me privilegiado em poder compartilhar e testemunhar com minha própria vida o poder e a graça infinita de Deus aos indígenas. Quero continuar dando o melhor de mim, usando estratégias mil e "fazendo das tripas coração" para poder transmitir de uma forma compreensível a mensagem da cruz, que é o poder de Deus, a fim de muitos virem a crer.
Unidos pela mesma causa,
Curt
Caro Rev Alfredo, quero parabenizá-lo pelo o artigo escrito no seu blog: EVANGELIZAÇÃO MISSIONÁRIA: ESTRATÉGIA HUMANA OU SOBERANIA DIVINA? Nós, como missionários do Senhor, sabemos o quanto é difícil alcançar o homem para Cristo, porque neste alcance encontramos muitas barreiras... e Deus usa-nos apesar das nossas limitaçoes... Sou missionário há mais de uma década em diversos contextos, e a cada dia percebo o quanto é complicado o ser humano, e como custa muito "levá-lo" ao conhecimento da verdade do evangelho, mesmo conhecendo e vivendo sua cultura e língua.Claro, todo o trabalho é do Espírito de Deus, que convence o homem...
Que Deus o abençoe ricamente
Francisco Moura
Missionário em Portugal
Interessante esse tema da missão junto aos índios. Incomoda-me o fato de haver culturas que estão distantes do nosso "mundo cristão". Como conciliar isso com a eleição? O que dizer dos povos pré-colombianos? Gosto de pensar que Deus posiciona os eleitos em um tempo e espaço em que venham a ouvir o Evangelho. Nesse caso, a conclusão é um tanto perturbadora: pessoas que vivem sem a menor chance de ouvir o chamado se encontram sem a menor dúvida entre os não eleitos. Gostaria de obter uma solução para esse conflito.
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